A damurida da Aldeia Flexal
– Doutor, vamos comer uma damurida amanhã?
– Comer, eu não sei se vou. Mas fotografar eu quero!
– Então vamos lá! Pra chegar ás sete!
– Sete da noite, Genésio?
– Não, Doutor! Sete da manhã!
Genésio é o Agente Indígena de Saúde. Damurida é o prato principal da cultura Macuxi. Caldo de pimenta às sete da manhã! Pra acordar o estômago! Bom apetite.
Cheguei cedo mas a galinha caipira já estava limpa, cortada em pedaços e mergulhada na água e pimenta. Fora isso, só sal.
– Mas pode usar tucupi. – Explica Eliane, esposa de Genésio.
Não tem tucupi. Tem pimenta. Muita pimenta. Um mosaico de formas, cores e ardência já enfeita a panela, dá gosto a carne e desafia nossa coragem: murupi, olho-de-peixe, malagueta, trótróimû e a campeã local, a canaimé. De tão “perigosa”, esta pequena e enrugada verdosa ganha nome do “coisa-ruim”, entidade talvez nem tão assustadora quanto a pimenta.
“bebe caxiri,
bebe macuxi.
come malagueta e come murupi,
quem sabe do sabor é indio macuxi”
O forró, da banda indígena Caxiri na Cuia, está na boca de todos em Roraima e confirma o que vamos experimentar. Da escadinha de dez filhos de Genésio e Eliane, oito estão lá. Mais a equipe de saúde e alguns vizinhos, logo a pequena varanda fica cheia de risos e crianças correndo. Chega mais gente e as brincadeiras sobre a resistência dos não-indígenas a damurida são as piadas da vez. Não existe nunca reunião fechada em aldeia. A solidão está sempre acompanhada.
Galinha cozida, lá vem a damurida – embora todos digam que “damurida de dia seguinte é mais gostosa”, mais encorpada. Para acompanhar farinha feita lá mesmo, grossa, amarela, servida na mão; beiju de tapioca, tradicional, seco no telhado; caxiri. Caxiri na cuia. Encorpado, de batata amarela, ainda pouco fermentado.
São sete e meia, Genésio, adventista, ora e agradece a Deus pela comida de cada dia. Daniel, dentista carioca, capitão reformado é o primeiro a se aventurar, digo, provar, mergulhando um pedaço da tapioca no caldo.
– Até que não arde tanto. – Exclama aliviado.
Genésio dá a dica.
– Molha da gordura do caldo. É lá que fica o ardor.
Não precisa. A damurida é como um concorde. Primeiro o avião depois o som. Quando você acha que não vai arder ela “bate”. Eu consegui até driblar a tal da “gordurinha ardosa”. Adiantou nada. Chorei com saudade de um copo de leite, receita infalível para a queimação.
O café-da-manhã foi completo. Para os não iniciados, frango frito. Para as crianças menores, o frango com caldo de damurida. Tem que se iniciar aos poucos. Para os adultos tapioca encharcada do caldo e a galinha da damurida. Sabor a cada mordida, esquentando, anestesiando, pinicando e por fim refrescando em uma onda de endorfina que só a pimenta consegue provocar. As sensações se fundem as do caxiri.
São 08:10h da manhã. O estômago não comemora – e treme de medo por saber dos inúmeros casos de gastrite por aqui – mas a alma está em festa. Obrigado Genésio. Obrigado Eliane. O dia já está ganho.
Tenho me divertido muito com esse blog Altamiro =D