Aldeia Sapan
(da língua Macuxi: Ksaban xpin = areia branca)
N 04 34 30.8
W 060 44 30.0
Assim que pousamos desce uma chuva que transforma o chão em uma liga grudenta que logo dá a sensação de carregarmos quilos em cada pé. As crianças correm descalças entre nós, formando minhocas de lama entre os dedos a cada passo. Um menino, o menorzinho, cai de bunda no chão e suja a roupa limpa. O pai o ajuda a se levantar, tira sua calça e sem alterar o tom de voz diz: "não vai mais por ali que cai". O menino, sorrindo, vai brincar do outro lado. Sem nossa preocupação, sem nosso estresse. Simples assim. E eles não tem máquina de lavar nem mesmo água encanada.
Esta é a fera que caiu no chão… Bochechas irresistíveis!
Acampo em um galpão grande, sob o telhado de cavacos e que faz as vezes de igreja, centro de artesanato e casa de pouso para visitantes. Quando levantamos começam a chegar várias famílias trazendo frutas, mingau, leite, farinha e caxiri. Toda quarta como hoje, eles fazem o café comunitário e depois se dedicam ao artesanato. Antes do café, a oração, o Pai Nosso e um pedido para que possamos ajudar a cuidar do corpo e que o Pai ilumine o espírito.
Detalhe do telhado, todo com telhas de madeira.
Noite na barraca. O vento soprando assobia e embala meus pensamentos.
Me vem a mente o trecho de uma música do meu irmão Rogers "a noite vem e me faz pensar, o que me trouxe aqui. Sair em busca de um ideal e assim eu sou feliz, porque eu vivo a vida que eu quis…" A música está faz coro com o susurro do vento gelado entre as telhas de madeira que protegem minha barraca. A lembrança do dia que se finda me traz novamente a sensação de estar realmente no paraíso em vida.
Hoje fui atender uma criança na Ponta da Mata, comunidade que fica na esquina da ponta da serra com o começo do céu. São cinco minutos de vôo ou duas horas de perna. Fui ver uma menina de 11anos, com paralisia cerebral, que havia parado de comer há 4 dias. A menina não anda, não fala, pouco interage com o meio, mas é visivelmente bem tratada: está limpa e tem bom peso. Seus pais não querem levá-la a cidade. Já foi uma vez. Ficou meses: fez exames, tomou remédios, passou por vários médicos e ninguém deu solução ou remédio. Desistiram. Buscaram um pajé, dois, três. Foram até em a Venezuela, pajé “internacional”, mas todos foram unânimes: foi quebra de resguardo. Com menos de uma semana a mãe saiu para andar, o que é coisa perigosa. A serra tem muito bicho ruim: Mariuá, Ma-urí, Kalauái. Pegaram seu espírito e agora só esperam ela fazer 12 anos. Neste dia, quando deve menstruar pela primeira vez, sua alma ficara mais frágil, como de toda moça nova e então irá os acompanhar de vez. Com esta convicção conformista os pais aguardam. Até o dia que Deus quiser. Ao menos já estão próximos do paraiso, onde a ponta da serra se encontra ao céu, tendo somente as nuvens e o sol por testemunha.
______ XXXXXX ______ XXXXXX ______ XXXXXX
Constantino é Placa. Pedra Branca é São Francisco. Funasa é Truaru. Funasa é Truaru. Placa, é Constantino na escuta. Funasa é Truaru. Constantino, aqui é o enfermeiro de Placa. Queria que fizesse uma ponte com a Funasa para saber da remoção da gestante. Barro é Lago Verde. Fala Barro. Queria a confirmação da vinda do tuchaua na semana que vem. Placa, é Constantino. A Funasa está aguardando a liberação do helicóptero para a remoção da gestante. Água Boa é São Mateus. A Neuza tá por aí? Alguém copia Espera Feliz?
Meu amigo Rafael, infectologista que agora trabalha comigo na saúde indígena.
Você não entendeu nada, né? Pois é exatamente desta forma confusa que funciona o sistema de comunicação entre as aldeias. Na radiofonia todo mundo fala (ou ao menos tenta) ao mesmo tempo. Não há privacidade ou “linha direta”. O siléncio só é obtido por alguns poucos minutos através dos gritos “Deixa eu modular (falar) com a Funasa! Tem paciente para remoção aqui”.Todo paciente grave que precise ser removido (ocorre principalmente por problemas de parto, fraturas e mordidas de cobra), depende deste sistema de comunicação, que funciona mal a noite e com tempo ruim. Já vi paciente aguardar até três dias para ser removido pois dependendo do tempo, além da dificuldade de transporte, na época de chuvas, nem avião pousa.
Hoje a história que acompanhei pelo rádio foi ainda pior. Gestante sangrando desde ontem em uma comunidade a 30min “de perna” da aldeia Feliz Encontro. Época de muita chuva. Carro não chega. O agente de saúde pede helicóptero. Conseguir é difícil e custa cinco vezes mais que avião. Mandam então um avião que sobrevoa a aldeia para ver se consegue pousar. O tempo firma e o comandante pousa. Ou tenta. Pista molhada, escorrega e o avião acaba literalmente de cabeça para baixo. Saldo final = técnica de enfermagem com fratura de clavícula + gestante aguardando o helicóptero amanhã. Por sorte nada mais grave.
Samã é o morro pontudo ao fundo, a direita da foto.
Aldeia Serra do Sol
Voos, rádios, armar e desarmar redes, barracas, transportar remédios, equipamentos. Esta é a rotina dos profissionais que passam 30 dias nas equipes aéreas, visitando em média 7 a 8 comunidades. É bastante cansativo, um pouco arriscado, mas plenamente compensador. Saber que estamos onde pouca gente vai e, mais ainda, estamos contribuindo efetivamente com a população mexe com a gente.
E vem as compensações… Ontem meu final de tarde foi dentro da melhor hidromassagem natural que já experimentei, formada pelas diversas quedas que o rio forma por trás da aldeia. A noite o pio da coruja, mau agouro para uns, não consegue antecipar quão boa seria a manhã de hoje.
Foi manhã de acordar preguiçoso, ouvindo o barulho da chuva. Hoje é dia de reunião e seguimos cedo para o malocão. Obra de arquitetura e tanto. Da estrutura central, sustentada por dois grandes troncos pendem 66 toras que apoiam o teto que abriga sem aperto mais de 300 pessoas. O grande malocão, que retirou a proteção de parte da floresta, agora oferece proteção espiritual e física a este povo. Oásis de frescor em meio ao calor equatorial. Espaçoso. Amplo. Fresco. Vale de paz.
Somos recebidos com dança. Aleluia. Mulheres dançam e cantam abraçadas com passo e cadencia sincronizados. Aleuia. O agente fala. Nós falamos e ele nos traduz. Higiene. Alimentação. Preventivo. A manhã se transforma em um saudável bate-papo, mas logo o canto volta e a dança encanta.
"Areeeruuuuuiaaaa………………. Areeeruuuuuuuiaaaaaa……………Areeeruuuuuiaaaa………………. Areeeruuuuuuuiaaaaaa……………
Areeeruuuuuiaaaa………………. Areeeruuuuuuuiaaaaaa……………"
A única palavra que entendo é o Aleluia que nomeia a dança, mas consigo compreender tudo. As mulheres pedem a proteção de Deus para suas famílias, suas roças e acima de tudo pedem as graças do Senhor.O ritmo hipnotiza, e pouco a pouco junto com elas me aproximo a Deus em uma única prece que não quero que acabe.
Diferente dos Macuxi e Wapixana que tentam resgatar suas tradições, hoje ainda relegadas as salas de aula e exibições em dias de festa, os cânticos e danças dos Ingaricó fazem parte do seu dia a dia, estão tão vivas quanto antes.
Aldeia Barreirinha
Cenário único onde os rios se dividem pelo lavrado e contornam enormes pedras que nascem aqui e ali, certamente plantadas por irmãos de Makunáima. Aldeia bilingue, aqui é onde encontro mais gente que fala bem macuxi e português, ainda que com um forte sotaque que não consigo descrever. O ‘é ‘ é aspirado, o ‘ó ‘ meio soprado e uma afirmativa pode ser uma simples respiração mais forte.
A noite é a primeira estrelada após dias de chuva e a última na comunidade. O tuchaua oferece o jantar e a natureza nos dá a música ambiente. Após a refeição tento identificar cada cantor na serenata. Sapos, grilos, rãs e pássaros se alternam em um alegro sem fim. Tuu… Tuu… Coach, coach, coach. Tuu… Tuu… Ti-ti-ti-ti. Criii.Tuu… Tuu… Ti-coach-cri-tuu-DOMINÓ. Dominó? O tuchaua, o agente de saúde e enfermeiros começam uma animada partida de dominó. Nada do tradicional vence-quem-acaba-primeiro. Tem regras, pontos e duplas que se provocam como em uma batalha de truco. Nossa dupla: Hilton e Sales contra os AIS de Barreirinha
Me retiro para a barraca, onde escrevo para vocês, agradeço por mais um dia e só sou ninado pelas canções da natureza.
boa noite
Meu amigo Altamiro,
Vc é o cara,abraçou mesmo a saúde indigena…sou assinante numero um das impressôes Amazonicas,e falo pra todo mundo que conheço o artista deste saite…rsrsrr
Desde já te agradeço..
Abraço,mestre…
“a noite vem e me faz pensar, o que me trouxe aqui. Sair em busca de um ideal e assim eu sou feliz, porque eu vivo a vida que eu quis…”. Acho que isso expressa bem seu trabalho aqui Alt, parabéns! Exercer a medicina de uma forma única e que lhe dê satisfação profissional e profissional,isso é um privilégio!
Caro Altamiro,
So’ leio seus e.mails antes de ir dormir, para que algum evento ou alguma imagem fiquem na minha alma e penetre meus sonhos.
Neste 77 o primeiro paragrafo ja’ disse tudo, pois nos transporta a um outro mundo, com a receita do “ante-estresse”.
Que este seu Novo Ano seja ainda mais enriquecedor do que o que passou. E que Deus o continue abencoando para ajudar ao proximo!
Um grande abraco,
Edmea
Muito bom, muito,muito, muito bpm.
Cícero
Admiro muito seu trabalho e dedicação aos que realmente precisam. A última fotografia realmente é uma das mais lindas que já vi. Meus parabéns, pelo trabalho e pelas fotos.
Que belo trabalho vc faz, cuida com tanto amooor dessas pessoas que tanto necessintam!